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Foto do escritorFelipe Cavalcante

A ditadura da minoria: como as associações de bairros prejudicam o desenvolvimento das cidades

Atualizado: 17 de mai. de 2021

Um dos grandes mantras do urbanismo e da gestão das cidades é a importância da participação da comunidade no planejamento urbano. Isso faz todo sentido, claro. Se algo vai impactar a minha vida, meu imóvel ou meu bairro, eu que quero poder dizer algo a respeito e ser levado em consideração. Acredito que ninguém possa ser contra isso.


Esse movimento começou a tomar maior vulto no mundo do urbanismo a partir da eterna Jane Jacobs, em sua luta de David contra Golias com a cidade de Nova York e mais especificamente com Robert Moses, que em sua cruzada “modernizadora” adotava uma abordagem “de cima para baixo” que priorizava os automóveis e não levava em consideração as comunidades locais. O clímax dessa disputa se deu quando Moses tentou construir uma rodovia por dentro de Greenwich Village com Jacobs mobilizando a comunidade e saindo vitoriosa. Fato raro o poderoso Moses perder uma disputa.


A partir daí o movimento pela “participação cidadã” e por uma maior democracia das decisões sobre as cidades se popularizaram e se espalharam pelo mundo, incluindo, claro, o Brasil. Essas diretrizes estão muito claras no Estatuto das cidades e são levadas a sério pelos municípios, sociedade civil organizada e pelo Ministério Público, muito ativo na fiscalização da participação popular não só na elaboração de Planos Diretores, mas em qualquer projeto de maior impacto nas cidades.


O problema é que na minha experiência pessoal eu sempre vi uma distância muito grande, abissal, entre o romantismo da participação popular no planejamento urbano e a realidade. O fato é que pouquíssimas pessoas têm interesse pelo assunto e participam das audiências públicas ou outros instrumentos de envolvimento comunitário.


Essas pessoas formam a maioria silenciosa de pessoas quem trabalham o dia todo, chegam em casa cansadas, não querem perder suas noites e finais de semana em audiências públicas, não têm interesse sobre o tema, não acham que têm algo a agregar, já que não entendem do assunto, não confiam no processo e acreditam que é um jogo cartas marcadas.


Por isso que por mais que as prefeituras se esforcem em divulgar as audiências públicas, pouquíssimas pessoas realmente comparecem. E para piorar o que já é ruim, é comum o Ministério Público usar o argumento de baixa participação popular para impedir o andamento de projetos importantes para a cidade, como se os órgãos públicos tivessem poder para obrigar os cidadãos a comparecer às reuniões que eles não querem participar.


Além da pouca participação popular espontânea, outro fator acaba prejudicando muito a qualidade dessa já pequena participação, que é o total desconhecimento dessas pessoas sobre o urbanismo e a dinâmica das cidades.


Uma coisa é você ter uma população com alto nível social, educacional e econômico como a de Greenwich Village, liderada pela maior urbanista de todos os tempos, combatendo a remoção forçada de uma comunidade para a construção de uma rodovia. Outra coisa bem distinta é exigir que uma população com baixo nível social, econômico, educacional e sem conhecimento técnico urbanístico tenha a responsabilidade de decidir sobre intervenções urbanísticas, imobiliárias e de infraestrutura complexas e de impacto difíceis de serem medidos até pelos especialistas.


Soma-se a esse caldo, a preponderância da ideologia sobre a realidade com muitas pessoas querendo impor suas opiniões, gostos pessoais e visões de mundo em detrimento da realidade objetiva e dos critérios técnicos. Estudos técnicos só são considerados quando reforçam a sua visão, sendo rechaçados quando apontam para caminhos diferentes, sendo muitas vezes derrotados por princípios gerais.


O resultado disso tudo é que de um lado os gestores públicos e órgãos como Ministério Público se investem do papel de guardiões e representantes da comunidade, mesmo que eles não tenham a menor idéia de quais são os interesses e vontades dessa grande maioria silenciosa. Assim, tentam impor suas próprias verdades como se fossem representantes da sabedoria popular.


Por outro lado, vemos o crescente aumento da participação de setores organizados, nesse caso, as associações de moradores, que se impõem por sua capacidade de articulação e pelo barulho que conseguem fazer, o que parece significar que estão ali defendendo os interesses da maioria. É mais ou menos o que vemos no cenário da política nacional, onde pequenos grupos organizados conseguem defender com muito mais eficiência seus interesses do que a população em geral.


Além de suas capacidades de mobilização, as associações também são muito ouvidas no debate público pela sua legitimidade. Nenhum funcionário público ou político quer bater de frente com uma associação de moradores.


O problema é que essas associações têm como único objetivo defender seus privilégios e visão de mundo, o que em boa parte das vezes está em desalinhamento com os interesses mais amplos da cidade e de sua população.


Em lugares como a Califórnia, onde é dado grande poder para as comunidades aprovarem novos empreendimentos e obras de infraestrutura, a crise habitacional é seríssima, com os moradores impedindo a construção de novos apartamentos e casas. Com isso, o riquíssimo estado da Califórnia tem os maiores índices de sem teto do País e assiste uma verdadeira migração em massa para outros estados, como o Texas, que têm menos restrições ao desenvolvimento imobiliário.


E o pior é que esse movimento, travestido de argumentos sociais e ambientais, atingem com mais forças as classes sociais desfavorecidas. Os ricos não querem que a classe média venha morar perto deles e a classe média não quer que os pobres venham morar perto deles, expulsando-os para as periferias da cidade e causando um imenso custo social, seja pelos longos deslocamentos que eles são obrigados a fazer, seja porque as partes das cidades as quais eles ficam relegados não possuem as mesmas infraestruturas, equipamentos e serviços urbanos.


No Brasil temos alguns casos célebres. Um deles foi o movimento dos moradores de Higienópolis em São Paulo para que o bairro não tivesse uma estação de metrô, que traria pessoas “indesejáveis” para a vizinhança.


Mais recentemente, estamos vendo um outro caso na Vila Leopoldina em São Paulo, onde uma intervenção urbanística em tudo favorável à cidade está sendo combatida veementemente por uma associação de moradores que conseguiu levantar mais de um milhão de reaispara utilizar em sua campanha e atua de maneira articulada e profissional para evitar que sejam construídas habitações populares no seu entorno.


Mas o caso mais notório é sem sombra de dúvidas o bairro dos Jardins também em São Paulo. Localizado no coração da área nobre de São Paulo, entre as Avenidas Paulista e Faria Lima, e ocupado por mansões. O bairro é uma anomalia sem paralelo no mundo.


Não tenho nada contra alguém querem morar em uma chácara na área mais valorizada de São Paulo. Eu também gostaria se tivesse condição, mas isso é claramente contra o interesse da cidade, pois subutiliza de maneira dramática a infraestrutura instalada e impede que a classe média more mais perto do trabalho, aumentando o custo das moradias e expulsando as pessoas para longe do centro, em um efeito cascata que atinge em cheio as pessoas mais pobres.


Com seu grande poder e influência política e econômica os moradores dos Jardins têm obtido sucesso em manter seus privilégios intocados em detrimento do bem-estar de milhões de pessoas.


Esse embate entre desenvolvimento e congelamento das cidades envolve na verdade uma disputa entre quem mora no local e quem quer morar lá no futuro. Nessa luta, quem mora leva vantagem por ser um público definido e que pode se articular, enquanto quem quer morar lá é um público difuso e sem articulação.


Outra vertente é a disputa entre locadores/proprietários de imóveis e locatários. Enquanto os primeiros geralmente têm o interesse de manter as coisas como estão para poder cobrar aluguéis maiores, os locatários, também desarticulados e sem representatividade, prefeririam maior oferta de imóveis para conseguirem pagar menores valores de aluguel.


Isso nos leva a outra reflexão, a de que o mercado imobiliário não é formado pelas incorporadoras, como as pessoas pensam. O mercado é constituído pelos compradores de imóveis e locatários, pelas pessoas que querem morar naquele local. Os incorporadores são apenas o meio pelo qual essas pessoas, o público final, alcançam seus objetivos.


O importante de toda essa disputa entre quem mora e quem quer morar, e entre passado e futuro, é se chegar a um entendimento se a cidade é um organismo vivo e dinâmico ou estático. Enquanto algumas pessoas querem congelar a cidade, achando que isso é não só possível, mas benéfico, outra parcela da sociedade entende que as cidades são dinâmicas e mutáveis e que não adianta ir contra esse fato.


Nessa disputa, as pessoas que advogam a participação comunitária ativa como fator determinante na gestão das cidades, acabam advogando sem querer pela paralisia e congelamento das cidades e pela manutenção de seus privilégios.


É claro que devemos preservar algumas características das cidades, especialmente seus patrimônios arquitetônicos, urbanísticos, culturais e ambientais, mas essa preservação não deve alcançar a sua microdinâmica habitacional, que deve ser conduzida pelos agentes sociais e de mercado conforme seus interesses e as regras estabelecidas.


É preciso encontrar um modelo de desenvolvimento urbano que capte e valorize os inputs gerados pela comunidade local, mas que os compatibilize com os interesses maiores e de longo prazo da cidade, sem o que estaremos estimulando uma ditadura da minoria interessada apenas em defender seus interesses e privilégios à custa do coletivo.

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