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Crônica de uma cidade paralisada

Foto do escritor: Felipe CavalcanteFelipe Cavalcante

A cidade sofre de um problema que prejudica milhões de pessoas diariamente. Dezenas de técnicos da prefeitura estudaram o problema nos últimos três anos e, junto com consultorias especializadas, chegaram à conclusão de que a solução é a construção de uma obra na localidade “Rua de dentro”. Essa obra vai beneficiar milhões de pessoas, mas os moradores do local onde será construída não querem ser incomodados pelo barulho da obra, têm receio de que a qualidade de vida deles seja prejudicada e de que novos vizinhos de “classes sociais inferiores” se instalem na região.


Os líderes do movimento aproveitam o fato de terem tempo disponível, pois um é aposentado, outro vive de renda e outro é funcionário público que trabalha até às 15h, para se dedicar ao movimento “Pelo direito à vida na Rua de dentro”, o que acaba preenchendo suas vidas até então vazias e dando um senso de propósito para eles.


Claro que a atenção dada pela mídia e a recém-adquirida celebridade não desagradam.

Em poucas semanas, após o lançamento da campanha “Pelo direito à vida na Rua de dentro”, seu perfil no Instagram cresce rapidamente e alcança milhares de seguidores.


Os posts agressivos e acusatórios contra a prefeitura, seus funcionários e a construtora, têm grande alcance e geram muita repercussão e viralizam em grupos de WhatsApp. Um dos posts tem mais de um milhão de visualizações.


Apesar da maioria dos moradores da “Rua de dentro” ser a favor da obra, eles estão muito ocupados cuidando de suas vidas, trabalhando o dia todo e querendo descansar à noite e aos finais de semana. Além disso, discordam dos métodos utilizados pelos moradores contrários à obra e preferem não se meter em confusão com seus vizinhos.


A prefeitura decide que vai ouvir os moradores da “Rua de dentro”, que serão os únicos afetados diretamente pela obra. Por outro lado, a prefeitura não ouvirá as milhões de pessoas que serão beneficiadas, pois é uma quantidade muito grande de pessoas e a prefeitura não tem como identificar quais, dentre todos os moradores da cidade, serão beneficiados e em qual medida.


Para poder ouvir a comunidade de maneira apropriada e seguindo os requisitos legais, a prefeitura decide realizar uma audiência pública, onde 28 representantes de moradores da Rua de dentro comparecem. Todos contrários à obra. A favor da obra comparecem apenas os técnicos da prefeitura e da empresa que fez o projeto.


Os técnicos começam a apresentar o projeto e são constantemente interrompidos pelos gritos e vaias dos representantes da comunidade local. No momento em que o engenheiro da empresa vai fazer sua apresentação, ele é impedido pelos gritos e vaias das pessoas contrárias à obra..


Quando a comunidade tem a palavra, oito representantes da “Rua de dentro” fazem uso dela, inclusive o representante da recém-formada “Associação de moradores”, que possui 16 membros afiliados. Todos são enfaticamente contrários à realização da obra, argumentando que será prejudicial à tranquilidade, que trará pessoas indesejadas para a vizinhança e que mudará o caráter do bairro. Alguns dão depoimentos emotivos sobre ter vivido naquele bairro por décadas e que não querem que haja qualquer mudança.

Uma senhora chora ao dar seu emocionado depoimento.


Apesar de os técnicos terem tentado demonstrar que esses receios eram infundados, os presentes nem quiseram ouvir, assim como também não apresentaram dados técnicos que apoiassem suas acusações.


Na hora do intervalo o Sr. João Aleluia, branco, classe média alta, comentou orgulhoso com os amigos que eles tinham que continuar pressionando a prefeitura, pois se a obra fosse realizada, poderia trazer novos vizinhos diferentes deles, de classe mais baixa, com o que todos concordaram enfaticamente.


Os representantes do Ministério Público acompanham de perto o processo, tendo inclusive enviado uma recomendação para que não seja dado andamento ao processo de licenciamento da obra Os técnicos ficaram assustados e não quiseram mais assinar qualquer documento, já que mesmo que tudo esteja correto e dentro da legalidade, eles poderão sofrer processos do Ministério Público e não terão a proteção legal da prefeitura. Se aprovarem o projeto, têm muito a perder. Se não aprovarem, não perdem nada e podem dormir tranquilos.


Se antes os representantes do Ministério Público já eram contrários à obra, agora decidem que caso a prefeitura insista, eles judicializarão a questão, o que é feito três dias depois com um documento com mais de 150 páginas, dando a enteder que essa decisão já estava tomada e a peça pronta antes mesmo da Audiência Pública.


Quem também está presente na Audiência Pública é o representante da universidade, Doutor em Território, gêneros e interseccionalidades, que, do alto de sua autoridade e da representatividade isenta da instituição, também se posiciona contrariamente à obra.


Mais uma opinião negativa sobre os impactos da obra, e em defesa do direito adquirido dos atuais moradores de não serem incomodados, é a do Presidente da “Entidade dos profissionais técnicos”, apesar de ele ter sido a pessoa que aprovou a elaboração do projeto quando era Secretário de obras do mandato anterior, que era do grupo político opositor ao atual Prefeito.


Os representantes da imprensa também estão presentes, inclusive do jornal “Folha do bairro”, que tem sido diligente em mostrar os impactos negativos da obra no dia a dia dos moradores e tem dado amplo espaço para seus moradores demonstrarem seus pontos de vista. O contato é facilitado pela amizade entre um dos líderes do movimento e o editor do jornal, que cursaram juntos a faculdade.


Nas reuniões de pauta e na edição das matérias, é sempre realçada a importância de ouvir os dois lados para que fique comprovada a isenção do jornal. Assim, a prefeitura é sempre ouvida quando a matéria já está pronta e suas respostas encaixadas nos espaços reservados para elas, ao final das matérias e incluindo apenas declarações genéricas dadas pelos seus representantes, evitando detalhar e expor as questões técnicas apresentadas.


No dia seguinte, a matéria sobre a audiência pública aparece com destaque na “Folha do bairro”, com a manchete na primeira página “População é contra nova obra” e com duas páginas mostrando os depoimentos contrários dos presentes e os impactos negativos da obra para os membros da comunidade.


A “Folha do bairro” continua repercutindo a Audiência pública e o novo processo do Ministério Público contra a obra e no fim de semana seguinte publica mais uma matéria de capa sobre o assunto, para mostrar o protesto da comunidade local contra a obra, onde houve a participação de 22 pessoas.


Como é ano de eleição, o candidato da oposição à prefeitura começa a utilizar essa questão como principal mote de sua campanha atacando frontalmente o atual prefeito, que precisa cada vez mais se defender das acusações e pressões, inclusive do protesto que é feito em frente ao seu prédio por 14 pessoas e é destaque em toda a imprensa e na internet.


A oposição tenta instalar uma CPI para investigar a obra na Câmara de Vereadores, com a liderança da oposição fazendo fortes discursos contrários à obra e acusando o prefeito de ter interesses escusos em sua execução. Esses discursos são sempre feitos com o plenário praticamente vazio, mas são gravados e publicados no perfil do Instagram do “Movimento Pelo direito à vida na Rua de dentro” e muito difundidos em grupos de WhatsApp.


Finalmente, o Prefeito acaba se rendendo à forte pressão “popular” e decide cancelar a obra, para alívio do grupo de 44 moradores contrários à obra, das entidades que se posicionaram contra e do Ministério Público, que elogiam a decisão e comemoram o sucesso de suas iniciativas. “A voz do povo foi ouvida”, afirma o Promotor que acompanha o caso.


Quem lamenta são os milhões de pessoas que teriam sido beneficiadas pela obra. Mas quem se importa com isso, né? O importante é que houve o processo de participação popular e que a comunidade local foi ouvida e sua vontade respeitada.

 

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